Aqui morava um rei
Aqui morava um rei quando eu menino
Vestia ouro e castanho no gibão,
Pedra da Sorte sobre meu Destino,
Pulsava junto ao meu, seu coração.
Para mim, o seu cantar era Divino,
Quando ao som da viola e do bordão,
Cantava com voz rouca, o Desatino,
O Sangue, o riso e as mortes do Sertão.
Mas mataram meu pai. Desde esse dia
Eu me vi, como cego sem meu guia
Que se foi para o Sol, transfigurado.
Sua efígie me queima. Eu sou a presa.
Ele, a brasa que impele ao Fogo acesa
Espada de Ouro em pasto ensanguentado.
O soneto acima é de Ariano
Suassuna. O “rei” do poema é João Suassuna, governador da Paraíba entre 1924 e
1929. Ariano nasceu em 1927, portanto, durante o governo do pai, e ele gostava
de lembrar que correra nu pelos corredores do Palácio da Redenção, onde, à
época, residia a família do “presidente da Paraíba”, hoje chamado governador.
Ariano Suassuna homenageia o pai perdido
para o ódio político e para as rixas familiares, quando mal tinha começado a viver.
A dor que lateja em cada verso foi descrita, em um depoimento dado para um
documentário sobre a Guerra de Princesa, como um punhal que ele imagina
enterrar-se em seu coração sempre que pedem para recitá-los.
É por essa razão que, sempre que
lembro a origem do nome atribuído à capital da Paraíba, lembro que se trata também
de uma homenagem aos eventos que nos levaram até ele. É como se essa tragédia shakespeariana continuasse a nos
assombrar quase um século depois. Sempre que esse debate volta — e ele sempre
volta — os que não conhecem a nossa história política, e os embates familiares
ainda tão presentes, continuam a se perguntar sobre a razão de sua existência, e,
com alguma razão, imaginam sua inutilidade.
Por isso, o Tribunal Regional
Eleitoral da Paraíba daria uma contribuição decisiva para que os habitantes de
João Pessoa possam, finalmente, superar o trauma da tragédia que o nome de sua
cidade rememora — e homenageia. Aliás, seria a oportunidade para finalmente
atender ao que os deputados estaduais decidiram durante a elaboração do
Constituinte da Paraíba, que, defrontados novamente com a dilema 30 anos atrás, resolveram
transferir a decisão para o povo pessoense, através de um plebiscito que jamais foi
realizado.
Seria um importante estímulo para
o povo da capital conhecer sua história, ou parte importante dela.
Um nome marcado pela tragédia, pelo sangue e pelo luto
Depois de deixar o governo da
Paraíba, João Suassuna se elegeu para mais um mandato de deputado federal e tinha
fortes ligações políticas com João Dantas, o advogado que em 26 de julho de
1930, assassinou João Pessoa na Confeitaria Glória, em Recife. O assassinato de
João Pessoa deflagrou a Revolução de 1930, que começaria dois meses depois, em
3 de outubro. Apesar do assassinato ter motivação passional, o crime mobilizou
o país como um crime político. João Pessoa havia se tornado uma figura-chave na
política nacional. Ele tinha acabado de participar e ser derrotado da eleição
presidencial ocorrida em março de 1930, na condição de candidato a vice na
chapa liderada pelo então governador do Rio Grande do Sul, Getúlio Vargas. Eram
recorrentes as denúncias de que a vitória do governador paulista, Júlio
Prestes, candidato apoiado pelo então presidente, o também paulista Washington
Luiz, tinha sido fraudada, o que não seria nenhuma novidade. João Suassuna era da
base de apoio do “perrepista” Washington Luiz no Congresso e apoiara Júlio
Prestes.
O que levou João Dantas à
Confeitaria Glória naquela manhã de julho, entretanto, foi a divulgação de
cartas e poemas eróticos da professora e poetisa cabedelense, Anayde Beiriz, sua amante, que o advogado guardava em seu escritório. As cartas foram encontradas
pela polícia no escritório depois de uma invasão e disponibilizadas
ao público, o que causou, claro, um escândalo que resultou numa
sucessão de tragégias: primeiro, o assassinato de João Pessoa, por João Dantas;
depois, do próprio João Dantas, morto na cela em que estava preso, em Recife, no
dia em que começou a Revolução de 1930 (3 de outubro), e, 19 dias depois (22 de
outubro), no suicídio de Anayde Beiriz, que fugira para Recife. Entre a morte de
João Dantas e Anayde Beiriz, morreu João Suassuna, também assassinado numa
manhã movimentada em pleno centro do Rio de Janeiro, quando se deslocava do
hotel onde se hospedava para a sede da Câmara dos Deputados, no Palácio
Tiradentes.
Enfim, o sangue representado pela
metade vermelha da atual bandeira da Paraíba, que divide com o
preto do luto, não jorrou apenas do coração de João Pessoa, atingido pelas balas
da arma de João Dantas.
A morte de João Pessoa, claro,
causou uma imensa comoção na cidade e protestos populares resultaram em incêndios
de residências e perseguições a políticos do antigo Partido Republicano da
Paraíba. Aproveitando o clima
de comoção provocado pelo assassinato do popular governador da Paraíba, foi proposto foi à Assembleia
Legislativa a mudança do nome secular da capital paraibana: de Parahyba do
Norte para João Pessoa. Cinco dias depois, o erro história estava consumado. A Paraíba ganhou uma nova bandeira para representá-la, com
as faixas vermelha, a nos lembrar do sangue derramado, e preta, o
luto da tragédia. E o NEGO, que relembra o apoio que João Pessoa negou à
candidatura de Júlio Prestes, uma atitude política corajosa, sem dúvida, mas
que teria se perdido nos escaninhos da História não fosse a tragédia passional
e os ventos tempestuosos que ela ajudou a soprar.
Apesar de achar improvável que
seja aprovada qualquer mudança de nome, considero que é hora de nos debruçarmos
sobre esse dilema para enfim tentar superá-lo. Nomes de cidades não são alterados sem
o calor dos grandes acontecimentos, a não ser que haja um inconformismo
majoritário na população, o que não é o caso.
Conhecer mais a fundo um capítulo
da história da cidade é uma boa justificativa para o plebiscito que o advogado
Raoni Vita pede que o TRE realize no próximo ano sobre a manutenção ou não do
nome da capital paraibano em atendimento à determinação constitucional.