Morgana Beatriz,
“Morganinha” como os pais e amigos mais próximos a chamavam, estava cada vez
mais irritada com o que acontecia no Brasil. Irritada não seria o termo
adequado para descrever esses sentimentos: Morganinha estava indignada, como
ela gostava de se autoproclamar quando postava alguma mensagem no Facebook ou
no Wathsapp sobre os descalabros que, segundo ela, os brasileiros estavam
obrigados a aguentar do atual governo.
Era a primeira vez que Morganinha
experimentava sentimentos que não estavam relacionados exclusivamente a si
própria ou à família. Política era um assunto que nunca a interessou e quando
acontecia do professor de sociologia da faculdade particular em que estudava,
um “comunista”, segundo sua apreciação a respeito do rapaz, introduzia assuntos
políticos, Morganinha aproveitava para ligar o iphone e verificar suas
mensagens.
Tudo mudara nos
últimos meses, especialmente durante a última campanha eleitoral, quando não
apenas descumprira a promessa de só tirar o título eleitoral quando fosse
obrigada, depois que completasse 18 anos, como principiara a pedir votos, coisa
que sempre deplorou. Morganinha adquirira uma repentina preocupação com “o” Brasil,
que enxergava apenas como uma entidade geográfica, já que a preocupação com o país
não se estendia ao “povo brasileiro”, que ela depreciava ferozmente.
Como a
jovem não estendia para si as qualificações que atribuía ao povo, é lícito
presumir que ela não partilhava aquele sentimento de pertencimento. Povo eram
aquelas com quem preferia não “misturar-se”, em qualquer ambiente que fosse.
Não gostava do bloco das Muriçocas, por exemplo, porque achava muito
“misturado” e tinha saudades dos carnavais fora de época quando podia brincar
só ao lado dos seus.
Certa vez em que ouviu a tia comentar que no condomínio onde
morava proibiram as babás de entrarem nas piscinas, mesmo com os bebês que
cuidavam, Morganinha perguntou com ar de incredulidade: – E permitiam antes?”
Na última vez que
foi a Orlando e a Miami, seus parâmetros de cultura avançada, os problemas que
antes enxergava no Brasil e em seu povo recrudesceram. Postou deslumbrada para
os amigos imagens daquele mundo limpo e organizado. Morganinha só não gostou
por completo daquela viagem porque na volta teve de aturar uma barulhenta
família “de pessoas mal vestidas” que ia visitar, depois de décadas, os
parentes no Nordeste. “É por essas e outras que se perde a alegria de viajar”,
escreveu ela na legenda de uma foto, com a família ao fundo, obtida na
simulação de um “self” dentro do avião.
Eis uma faceta que odiava no seu
Brasil. A mistura que, lastimava, começava a enxergar em outros lugares, antes
exclusividade de sua classe social. Na volta do primeiro dia de aula na
faculdade, Morganinha contou, com os olhos que aos poucos foram se enchendo de lágrimas,
que em sua sala agora também estudava gente de “outro nível social” e que
aquilo estava “parecendo uma escola pública”. Revoltada com esses fatos, pela
primeira vez Morganinha passou a prestar a atenção para entender duas palavras cujo
o significado desconhecia: “universalismo” e “meritocracia”. Morganinha passou
a apreciar toda discussão em que pudesse atacar o governo, especialmente quando
dela participava alguém que o defendesse.
Um tema era recorrente nas conversas em
mesas de bar e nos encontros sociais que a adolescente participava com
frequência: a corrupção do governo.
Tudo isso era muito
novo na vida de Morganinha, cujo nome herdara da avó paterna, uma senhora de 80
anos que ultimamente se animara a contar histórias sobre o que acontecera nos
anos anteriores a 1964 e sua participação para evitar que o Brasil “caísse nas
mãos dos comunistas”. No começo, Morganinha escutava a avó com ares de bocejo e
esperava a primeira oportunidade para mudar de assunto.
Agora, não. Nos últimos
meses, a filha de Américo e Vanusa, ele dono de uma grande empresa de segurança
e ela alta funcionária da Justiça, escutava as histórias da avó com entusiasmo
e curiosidade. Era uma nova faceta que descobrira na avó, já que do passado que
antes brotava das memórias de Dona Morgana raramente aparecia política, a não
ser para relembrar as relações sociais com o círculo do poder político no
estado.
Morganinha, que não conhecia nada desses “tempos do ronca”, como ela
desdenhava do passado que desconhecia por completo, achava particularmente
interessantes as histórias que a avó tomara conhecimento pela boca do marido, o
falecido Dr. Estavão, que morrera há 10 anos desembargador aposentado e
conseguira a nomeação depois de 1964. D. Morgana desenterrava as memórias que o
marido lhe confidenciara nos mais de 50 anos de convivência e que,
especialmente depois do fim da ditadura, ele passou a desejar carregar para
o túmulo.
Num domingo, em
meio a cervejas e espumantes, antes de Morganinha sair com as amigas, o irmão e
o namorado, Damaceninho, para mais uma manifestação contra o governo na praia,
D. Morgana contou detalhes de como camponeses foram presos e assassinados logo
após os militares assumirem o poder. Dasmaceninho, cuja alcunha era também
parte da herança paterna, lembrou-se na mesma hora de uma postagem que lera e
compartilhara no Facebook sobre o Movimento dos Sem Terra e disse em tom de
galhofa: “Bons tempos! Bem que podiam voltar a fazer o mesmo com esses agitadores
sem terra!”
– Vão embora! –
disse a avó alegremente, levantando-se com esforço. – E façam por mim o que um
dia eu já fiz pelo Brasil. Tirem essa corja do poder!
E todos brindaram
ao Brasil antes de sair.
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