Manifestações: um balanço
Um mês depois do início das grandes manifestações, que se espalharam por todo o país como um rastilho de pólvora durante o mês de junho, mesmo sem terem se esgotado completamente, apesar do visível refluxo, já é possível vislumbrar uma análise dos seus resultados políticos, especialmente os mais visíveis e de curto prazo. Os de longo prazo, só o tempo nos revelará o verdadeiro alcance dessas manifestações.
O certo é que elas ajudaram a chacoalhar o ambiente político
nacional, acomodado, de um lado, pelo enfadonho lengalenga da oposição tucana,
que sonha trazer de volta seu programa liberalizante, mesmo com a maior parte
da Europa – Espanha e Itália, principalmente – vivendo hoje uma quebradeira
generalizada e níveis de desemprego sem precedentes desde o fim da Segunda
Guerra Mundial, exatamente porque seus governos teimam em esgotar as economias
nacionais para manter os compromissos assumidos com os bancos. Se a menção a
isso não é suficiente, relembremos o fato de que o Brasil quebrou três vezes
seguidas nas três grandes crises que aconteceram durante o último governo
tucano (México, em 1995; Rússia, em 1997; e Coréia, em 1998), sendo em todas
elas obrigado a recorrer a pesados empréstimos com o FMI .
Pelo lado do governo, a ampla aliança pela “governabilidade”
levou o PT cada vez mais a se afastar de seus compromissos mais à esquerda. Dez
anos depois de assumir o governo, as manifestações representaram a primeira
crise não gestada no âmbito do parlamento ou por denúncias da grande imprensa.
E nesse teste, a base parlamentar do governo que é amplamente majoritária, se
mostra cada vez mais incapaz de oferecer o suporte que o governo Dilma precisa
para enfrentar a crise. Depois de recuar na proposta de convocar uma
Constituinte, Rousseff enfrenta uma clara má vontade da maioria dos partidos de
sua base parlamentar até para por em prática a ideia da realização de um
plebiscito sobre a reforma política. O PMDB conspira abertamente contra a
proposta, argumentando falta de tempo para realiza-la. Todo mundo sabe que o tempo
do Congresso é o tempo político. Se houver mesmo disposição e vontade política,
não é necessário mais que um dia para votar a proposta, como ficou demonstrado
em várias ocasiões no passado e mais recentemente.
Pressão
para o diálogo
Manuel Castells: Dilma foi a “primeira líder mundial a ouvir as ruas" |
O fato é que toda essa movimentação no âmbito do governo e
entre os partido foi provocada pelo atordoamento político gerado pelas
manifestações. De tão surpreendentes, o governo e o PT ainda não compreenderam
com clareza o que aconteceu no país no último mês e os motivos que levaram
centenas de milhares de pessoas às ruas. Acostumado a liderar essas
manifestações pelo menos até assumir os destinos do país em 2003, o PT foi
obrigado pela primeira vez durante o seu governo a ter de dar respostas às
demandas originadas nas ruas, que o fez lembrar que existe política para além
das antessalas do poder.
Mesmo sob pressão, felizmente, Dilma Rousseff não tapou os
ouvidos ou fechou os olhos para o vulcão que esparramava lavas pelas ruas do
Brasil, desde 1992 adormecido. Como bem lembrou o sociólogo espanhol Manuel
Castells, Dilma foi a “primeira líder mundial a ouvir as ruas", o que
talvez explique o aparente refluxo atual das manifestações, ao lado do medo que
passou, como sempre, a tomar conta de parte da classe média quando as manifestações
começaram a despertar preocupação por conta de sua radicalização.
Conquistas
da cidadania
Castells sabe bem do que fala. A crise europeia é exemplar
para demonstrar a atual incapacidade daqueles governos para o diálogo em
situação de crise como a que quase toda a Europa enfrenta hoje. Todas as
“amargas soluções” (corte nos gastos públicos, redução de salários, demissão de
servidores) enfrentam forte oposição popular, para as quais os governos
europeus se mantem indiferentes. Ao que parece, como eu já disse, dar segurança
aos bancos vem primeiro que o bem estar da população.
No Brasil, que passou ileso pela maior crise econômica
mundial desde a de 1929, a situação econômica não é tão grave como a da Europa,
sendo as manifestações muito mais o resultado de insatisfações políticas com o
modelo institucional da democracia brasileira, onde não há canais para a
expressão de vontades e insatisfações. Foi esse diálogo que as manifestações
forçaram que acontecesse, e que a presidente aparentemente se dispõe a
estabelecer. Isso se os partidos que a apoiam, a exemplo do PMDB, permitirem.
Por isso, uma reforma política que apreenda esse sentimento
das ruas e seja capaz de criar canais de participação em que o cidadão comum,
que não se sente representado pelo atual modelo representacional, possa se
expressar. Talvez seja essa a maior conquista da cidadania brasileira dos
últimos tempos, afora o aumento do gasto público com educação, saúde e
mobilidade urbana já assegurados depois das manifestações.
Nenhum comentário:
Postar um comentário