segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

NAÇÃO EM TRANSE: os impasses brasileiros por trás da tentativa de golpe bolsonarista de 2023

Enquanto acompanhava as imagens de bolsonaristas invadindo o Congresso na tarde de ontem, foi impossível não lembrar dos eventos de 17/06/2013. Na tarde-noite daquele dia, o Congresso também foi invadido, não com a violência e a abrangência verificadas no ataque de ontem, que se estendeu às sedes dos poderes
Executivo e Judiciário. Os tempos ainda eram outros. A criança que nasceu naquele dia cresceu e sua face adulta e a do horror bolsonarista.

Enfim, é impossível entender 2023 sem estabelecer seus vínculos com 2013. As mobilizações de 2013 anteciparam as mobilizações que desaguaram no golpe de 2016; o golpe de 2016 antecipou a ascensão do bolsonarismo e a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018; a eleição de Jair Bolsonaro foi o corolário, a realização de um projeto, pensado, como sempre, de fora para dentro, mas executado com apoio interno, de destruição de qualquer projeto de inserção soberana do Brasil no mercado mundial, de abandono de qualquer possibilidade do país se tornar um "global player". No ponto final desse projeto está uma passagem de retorno à completa subordinação econômica, uma espécie de retorno aos fins do século XIX, que é onde nós já estamos, por exemplo, se considerarmos a participação da indústria nacional na formação do PIB brasileiro, que é inferir a 10%. Isso para não mencionarmos outros retrocessos históricos.

Eis a raiz do impasse brasileiro, que é muito mais do que uma crise institucional provocada por lunáticos e celerados golpistas. A nazificacão do bolsonarismo é à brasileira, ou seja, é apenas no plano de algumas ideias, é periférica, é de uma religiosidade mística que aproxima evangélicos e católicos, dissolvendo suas diferenças e os unindo numa única corrente de valores e ideias políticas realizada pela adesão a um conservadorismo antimoderno e - eles vão achar estranhíssimo - anti-liberal. Essa aparente dissonância me faz pensar - para o estranhamento de alguns, talvez de muitos - que o bolsonarismo é uma manifestação legítima do padrão cultural da chamada pós-modernidade. Talvez não seja obra do acaso que um dos termos preferidos pelos bolsonaristas no debate público seja "narrativa".

Voltando ao fio da meada, há muito de estrutural, para usar uma expressão em desuso, nos acontecimentos de ontem. O apelo à intervenção das Forças Armadas, ou seja, a um golpe militar, é um apelo não apenas ao retorno de Jair Bolsonaro ao poder. É mais do que isso. Trata-se de um apelo ao papel que Jair Bolsonaro aceitou cumprir tão bem no exercício da Presidência, que ajudou a corroer por dentro ainda mais as instituições da República, a consciência democrática nacional e, mais ainda, as riquezas do nosso território. 

Parece um paradoxo nesse caso apelar a instituições que, em tese, existiriam para defender a soberania nacional. No caso de países de modernização retardatária, como o Brasil, as Forças Armadas em geral incorporaram projetos (autoritários) de desenvolvimento e industrialização. Nas últimas décadas, as maior parte da oficialidade das Forças Armadas no Brasil se converteu de corpo e alma ao neoliberalismo. O projeto dela é o projeto de Paulo Guedes. Apesar da retórica, essa oficialidade tem pouco a ver com os "tenentes" que assumiram o poder em 1964. São tão entreguistas quanto Paulo Guedes e Jair Bolsonaro. Existem, claro, injunções de ordem geopolítica, mas não cabe estender ainda mais esse texto. 

Enfim, o bolsonarismo não é só a negação de qualquer projeto de país, de qualquer projeto de desenvolvimento e reindustrialização, de soberania nacional. Ao contrário. Como eu tenho chamado a atenção, não é uma escolha aleatória os bolsonaristas se auto-atribuírem o epíteto de "patriotas". Ontem que eles jamais se dizem "nacionalistas". Enquanto a noção de pátria e mais territorial e simbólica, a ideia de nação é muito mais abrangente, incluindo a própria ideia de "pátria". Nação é povo, identidade nacional, soberania, economia e desenvolvimento, e muitas vezes se afirma na oposição a outras nações. Para o nacionalismo, a nação tem interesses. Mas, sobretudo, nacionalismo é, sobretudo, unidade nacional. Sem ela, não pode haver a nação. Por isso, o varguismo e os militares de 1964 eram patriotas, mas também nacionalistas. Já o bolsonarismo é a negação de tudo isso. Jair Bolsonaro jamais se preocupou com a reunificação do país. Mais uma vez, foi o contrário disso. Seu governo foi um tensionamento permanente sempre em busca de um inimigo a ser combatido (a "esquerda", o PT, o "comunismo", e Globo, a Folha, o Congresso, o STF). 

O bolsonarismo sofreu um grande golpe ontem, ao atravessar o Rubicão do golpe. No desespero, deram o passo nesse jogo que parecia de espera. Será um erro, porém, imaginar que a divisão da sociedade nacional será arrefecida pela derrota do golpe. Essa divisão ainda perdurará por muito tempo ainda e, enquanto o impasse entre os que desejam a dissolução da nação, a fragmentação completa dos interesses nacionais numa miríade de interesses individuais, todos subjugados à financeirização da economia nacional, e os que, com maior ou menor ênfase, lutam por manter as bases mínimas da nação brasileira.

O Brasil precisa de um novo projeto de nação. Talvez falte isso à biografia de Lula, que, por enquanto, está conseguindo transformar o limão que o bolsonarismo lhe ofereceu ontem numa limonada, o que é um alívio nesse sol cáustico de uma crise estrutural, cujo desenlace nos levará ou de volta ao século XIX ou nos abrirá as portas para o século XXI. E não apenas como um país democrático.

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