sábado, 31 de julho de 2010

Celso Furtado, o mais universal dos paraibanos: uma homenagem aos seus 90 anos

Nenhum paraibano foi mais universal e internacional do que foi Celso Furtado, cuja extensa obra ainda serve de referência tanto para acadêmicos quanto para planejadores no âmbito do Estado. Celso Furtado nasceu há 90 anos em Pombal no dia em que seria assassinado João Pessoa dez anos depois, quando o futuro economista já morava na antiga cidade da Parahyba e estudava no Lyceu Paraibano. Foi a ousadia intelectual desse paraibano que tornou-o um clássico, um intérprete imprescindível do Brasil e de sua história. Furtado figura no panteão do pensamento brasileiro ao lado de nomes como Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr., pensadores que produziram um conjunto de obras que nos ajudaram a pensar e entender o Brasil a partir de modelos originais, e que tem todos eles como ponto comum a aproximá-los o uso da história como suporte de suas interpretações.

Com Formação Econômica do Brasil, publicada em 1958, depois que Celso Furtado voltou de Cambridge, onde ele havia concluído seus estudos pós-doutorais – isso depois de alguns anos de trabalho na CEPAL, instituição que ele ajudou a formar ao lado de Raul Prébish, – o economista paraibano promoveu uma importante guinada nos estudos sobre a história econômica do Brasil. Foi com Formação e as obras posteriores que Furtado ajudou a criar uma escola em que grandes economistas se formaram, a exemplo de Maria da Conceição Tavares, Carlos Lessa, José Luiz Fiori e tantos outros: o esturturalismo. E a profundidade e a perenidade da obra de Celso Furtado residem especialmente neste ponto: a economia brasileira e suas estruturas são historicamente determinadas e, sendo assim, são superáveis.

A problemática regional está expressa, na sua origem, como um problema do século XX, na oposição entre o setor agrário e o setor urbano-industrial, e nos conflitos resultantes dessas desigualdades. E o Estado joga um papel fundamental na sua resolução, palco privilegiado que é desses conflitos. A questão regional, em seu primeiro momento, expressou o reconhecimento de que as desigualdades regionais representavam entraves para o desenvolvimento capitalista, especialmente nos países de capitalismo tardio como o Brasil.

Apesar da obra intelectual de Celso Furtado ser muito mais ampla, darei destaque a que ele produziu tendo a região Nordeste como objeto de estudo. E ela parte de um pressuposto, que pode ser melhor visualizado quando nos defrontamos com a questão levantada pelo historiador inglês David Landes, que vem a ser o subtítulo de um grande livro chamado A riqueza e a pobreza das Nações: "porque algumas nações são tão ricas e outras tão pobres".

Como eu afirmei na última quarta-feira (28) para uma platéia que participava do Encontro Nacional de Estudantes de Economia durante uma mesa redonda em homenagem ao pensamento do maior economista brasileiro, Celso Furtado, promovida pelo Conselho Regional de Economia: a questão levantada por Landes continua teimosamente a nos cobrar respostas de todos nós, e o Brasil não poderá avançar, a não ser reproduzindo as mazelas do velho modelo de desenvolvimento concentrador da renda, se não lograr superar as suas desigualdades sociais e regionais. Por isso, Celso Furtado continua tão atual.

Nos anos 1950, Furtado ousou perguntar ao país: por que algumas regiões brasileiras eram tão ricas e outras tão pobres? E por que, no interior dessas regiões, existem tantos pobres e tão poucos ricos? O que explica essas desigualdades e quais os meios para superá-las?

Sem dúvida, é dessa problemática que emerge a chamada "questão regional", e a questão regional nordestina em particular, que nasceu nos anos 1950, quando o Brasil iniciava um novo ciclo de desenvolvimento com forte presença do capital estrangeiro. E os conflitos resultantes da implementação desse novo modelo se exprimem de maneira clara quando olhamos para as desigualdades regionais. Ainda na última quarta, o economista, presidente da Academia Paraibana de Letras e que foi amigo pessoal de Celso Furtado, Juarez Farias, lembrou um dado contundente levantado por ele próprio quando trabalhava no BNDE (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico) e que exprime muito bem o desprezo pela problemática regional: dos investimentos previstos para o Plano de Metas do governo JK, apenas 6% eram destinados ao Nordeste. Os outros 94% eram voltados para o Centro-Sul.

Nos anos JK, a política econômica era dirigida para o objetivo de consolidar o Brasil como país industrial, buscando completar o ciclo de substituição de importações. Entretanto, com a indústria concentrada no Sudeste e com inexistência de planos para desconcentrá-la, fica claro que as desigualdades regionais não eram vistas como um problema. E elas se acentuaram e se tornaram visíveis nos anos 1950 decorrentes, em parte, dessa reconfiguração do modelo de desenvolvimento brasileiro.

Foi nessa conjuntura que entraram em cena as idéias de Celso Furtado. Um ano depois de publicar o clássico Formação Econômica do Brasil, Furtado, então economista do BNDE e trabalhando no GTDN (Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste) é convidado por JK para expor suas idéias sobre os problemas da região. Dessa exposição e do convencimento de JK das dimensões do problema, nasce a chamada Operação Nordeste, que foi o primeiro passo para a criação da Sudene. Celso Furtado foi convidado por JK a colocar no papel o que disse durante aquela reunião e do esboço dessas idéias nasce o mais impressionante e fundamentado documento oficial produzido sobre a região, que foi Uma política de desenvolvimento para o Nordeste, um clássico insuperável do diagnóstico social e econômico da região.

Ali, mais do que em qualquer outra oportunidade, o pensamento de Celso Furtado teve oportunidade de se tornar ação e suas interpretações sobre o Brasil, especialmente em Formação Econômica do Brasil, puderam ganhar um sentido prático. Celso Furtado começou a desenvolver uma visão crítica a respeito das políticas de açudagem elaboradas e colocadas em prática pelo DNOCS, e que sintetizavam as políticas voltadas para o Nordeste, à época hegemonizado por grupos oligárquicos rurais, e que ficaram conhecidas como "solução hidráulica", que priorizava a construção de açudes e barragens para armazenamento d'água, numa região que ostenta altos índices de evaporação.

A partir dos estudos de Guimarães Duque, Celso Furtado passou a ter uma compreensão mais dinâmica dos problemas ecológicos e hidrológicos da região. Entretanto, o mais importante, e que faltava a esses estudos, era relacionar a ecologia às estruturas econômicas e sociais da região, pois isso permitiria perceber que os problemas ocasionados pela seca não eram provenientes desse fenômeno climático, mas daquelas estruturas sociais e econômicas reproduzidas por séculos no Nordeste. O atraso do Nordeste estava portanto, ligado à sua formação histórica e às estruturas arcaicas que perduravam.

Não foi por outro motivo que, num paradoxo aparente, foram exatamente os grupos oligárquicos nordestinos os que mais tenazmente se opuseram à criação da Sudene. Primeiro, porque ela seria vinculada diretamente à Presidência da República, fugindo ao controle desses grupos que dominaram por décadas os órgãos federais no Nordeste; segundo, porque Celso Furtado propunha uma completa reestruturação econômica da região, propondo que a política de desenvolvimento tivesse na indústria, através da industrialização, o vetor mais importante da modernização do Nordeste objetivando a diversificação da produção regional.

No documento do GTDN de autoria de Celso Furtado foi elaborada a primeira política global de desenvolvimento regional, cuja análise levava em consideração 4 aspectos importantes:

  1. Disparidades entre os níveis de renda do Nordeste e do Centro-Sul e o ritmo de crescimento diferenciado, favorável à região mais industrializada, ao lado de uma inadequada concepção a respeito do desenvolvimento do país, que prejudicava fortemente a economia nordestina, o que era agravado pela manutenção de uma estrutura econômica arcaica e pelas dificuldades ocasionadas pela ecologia da região;
  2. Predominância da pecuária extensiva e pela combinação do algodão com a produção de subsistência, o que gerava dificuldades sociais para a população rural que habitava o semi-árido nordestino. A ação do Estado se resumia, até então, às chamadas políticas de combate às secas, que tanto contribuíam para manter na região um "excedente demográfico" vivendo da agricultura de subsistência, como para reproduzir essa estrutura arcaica;
  3. Diretrizes para mudar a estrutura da economia nordestina através a) do aumento de investimentos industriais b) transformação da ''faixa úmida" em zona produtora de alimentos para os centros urbanos que iriam se industrializar e c) transformação da zona semi-árida, objetivando o aumento da sua produtividade para torná-la mais resistente às secas.
  4. Promoção da diversificação da produção interna, através da industrialização, que objetivava a) oferecer emprego a uma massa, estimada (final dos anos 50) em pelo menos meio milhão de pessoas sub-empregadas; b) promover a ascensão de uma nova classe dirigente, comprometida com o "espírito de desenvolvimento", ou seja, uma burguesia urbana e rural para se contrapor as velhas oligarquias que dominavam a política e o Estado na região desde o Império.

Como chama a atenção o sociólogo Francisco de Oliveira, poucos textos perecem tão exitosos e derrotados ao mesmo tempo como esse produzido por Celso Furtado em nome do GTDN: de um lado, o Nordeste alcançou a tão sonhada e distante – no final dos anos 50 – industrialização, que possibilitou a metamorfose de parte das velhas oligarquias sem, no entanto, possibilitar às massas nordestinas a visão da prometida "terra de Canaã." A pobreza se acentuou ganhando novos contornos. A riqueza cresceu e uma moderna burguesia emergiu, dando um tom lustroso à velha face da oligarquia, que apenas persiste como um zumbi nas práticas de controle do Estado no Nordeste e cuja hegemonia esmigalhou-se na subordinação a esse novo bloco de poder "moderno".

Em 1964, os militares tomaram o poder, sendo Celso Furtado uma das suas primeiras vítimas, quando foi afastado da Superintendêcia da Sudene. Depois do golpe de Estado, os militares deram continuidade a essa mudança no Nordeste se apropriando das idéias de Furtado, retirando-lhes, entretanto, aquilo que seria o fator mais importante para impulsionar essas mudanças: o desenvolvimento e a modernização do Nordeste através da ampliação do investimento industrial e agrícola e do pleno emprego do capital e do trabalho. Tudo isso tendo como suporte a distribuição da renda e da terra.

51 anos depois da criação da Sudene esse objetivo finalmente começou a ser atingido quando os dados atuais sobre crescimento econômico e ascensão social começam a mostrar isso. Mas é preciso aprofundar esse movimento e dar-lhe mais rapidez, especialmente tocando naquilo que ainda permanece intocado: a concentração fundiária, especialmente na Zona da Mata, e uma reestruturação econômica e social do semi-árido através da adaptação de práticas econômicas è ecologia da região, além estímulo à desconcentração do investimento produtivo nas grandes cidades, redirecionando parte das atividades econômicas para zonas urbanas interioranas, onde já reside a maior parte de nossa população.

Sem isso, os avanços no Nordeste terão sempre um limite. Um limite que Celso Furtado ousou tentar superar, mostrando como poderia ser feito. Esse continua sendo o nosso desafio.

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