Não gosto do termo judicialização da política. Ele parece indicar da parte de quem o utiliza a preferência pelo seu oposto: a politização da justiça. É óbvio que não acredito numa justiça completamente alheia à política e ao poder. Feita por homens e mulheres providos de valores e interesses, a justiça não está acima da sociedade, por mais que se esforcem os magistrados em demonstrar o contrário, seja para reforçarem a imagem de imparcialidade da justiça, seja para reforçarem o poder da instituição e de suas próprias posições.
Entretanto, para fugir de suas idiossincrasias a justiça precisa de critérios para levar à efeito suas decisões sem que seja questionada ou atingida naquilo que deve ser o fundamento de sua existência: a independência e a neutralidade, especialmente em relação aos outros poderes. E especialmente quando o objeto de sua ingerência é a política e a resolução de conflitos eleitorais.
Pois bem. Estamos vivendo uma importante transição no âmbito da relação entre poder, eleições e justiça, com o aumento da capacidade desta última de arbitrar possíveis conflitos gerados por desigualdades durante as disputas eleitorais pelo uso do poder político e econômico, o que tornou-se necessário principalmente após o advento da reeleição. O resultado tem sido inevitavelmente a redução do poder pessoal de muitos políticos, antes intocados pela inexistência de meios de controle sobre eles, considerando que a fonte principal desse poder pessoal era o poder do Estado, que se misturavam para tornarem-se uma coisa só.
Governadores e prefeitos foram cassados por utilizarem de forma escancarada o poder político e econômico, como foi o caso da disputa eleitoral de 2006 aqui na Paraíba. Quando eu digo "escancarada" é que existem formas, digamos, mais sutis de uso da máquina do governo no interior do poder que lhe é intrínseco, formas que, por isso, tornam-se cobertas de legalidade. Isso todos os presidentes, governadores e prefeitos fazem, e fazem porque exercem a prerrogativa política de "governar", de tomar decisões.
Não foi esse o caso da cassação do ex-governador Cássio Cunha Lima. Foram tantas as provas deixadas que só quem contava com a impunidade podia com desfaçatez produzi-las, como se ele se julgasse intocado por uma justiça que não ousaria se imiscuir na política, seja porque os juízes não teriam coragem de enfrentar o poder de um governador, seja porque "eleito" por "1 milhão" de eleitores não haveria legitimidade política para apeá-lo do poder. Isso seria contar com a "politização da justiça", o que equivale a contar com o julgamento eminentemente "político" dos processos de cassação.
E foi porque o TRE da Paraíba e o TSE não se renderam a esse poder e prestaram atenção nas provas apresentadas de uso da máquina pública que o ex-governador foi cassado, mesmo que ele continuasse afirmando a legitimidade de sua eleição – conquistada de maneira ilegítima – e o envolvimento da justiça paraibana com projetos de poder. Quando ele dizia isso – quantas e quantas vezes eu ouvi isso repetido na boca do ex-governador? – estava apenas lamentando não ter o controle que ele atribuía ao seu adversário, argumento que se esvaiu quando o Ministério Público Eleitoral e o TSE confirmaram a sentença aqui prolatada.
Cunha Lima julgava-se acima da lei. E pelo jeito continua a pensar assim. Quando ele cunha o slogan "deixe o povo votar" e mobiliza eleitores nessa campanha, o que o atual candidato a senador tenta? Pressionar a justiça na intenção de mais uma vez buscar politizá-la, ou seja, que os juízes do TRE se sintam pressionados para que, mesmo fora da lei, ele possa ser candidatato.
"Deixe o povo votar" soa também retrospectivamente, lembrando os mais de 1 milhão de eleitores que tiveram seus votos "cassados" por uma possível arbitrariedade da justiça eleitoral que substituiu esses eleitores no papel de decidir quem governaria a Paraíba. O ex-governador Cássio Cunha Lima age como um menino tirânico que de repente descobre, fora de casa, que seu poder tem limites, e que ele, ao contrário do que antes pensava, não pode tudo. E, diante do fato, esperneia, grita, xinga, chora.
E veja que, ao invés de injustiçado, Cunha Lima foi na verdade beneficiário de uma legislação ainda permissiva com maus políticos. Por exemplo. Para fugir da lei do Ficha Limpa, o ex-governador argüi o cumprimento de sua pena. E que pena! Enquanto ele a cumpria (virtualmente), governou a Paraíba durante mais de dois anos, no "bem bom" do Palácio da Redenção. Ora, como é que alguém sem direitos políticos pode governar um estado? Sem direitos políticos, todos os atos do ex-governador no exercício do cargo não estariam nulos? Se não, como esse tempo pode ser incluído na pena? Isso é o que se pode chamar de pena virtual e, mais do que isso, um convite ao descumprimento da lei: ao invés de cumprir pena, o transgressor se beneficia governando um estado por mais de dois anos e ainda pode candidatar-se na eleição seguinte, favorecendo-se dos dois anos de governo ilegítimo.
Se os dois anos de governo não podem se abolidos por conta do limbo jurídico que isso geraria, prejuízo causado pela lentidão da própria justiça em julgar o caso, que julgue hoje o processo que pede a cassação do registro de candidato do ex-governador pela acusação de ter realizado gastos excessivos com publicidade ainda durante o ano de 2006 (só nos 6 primeiros meses daquele ano eleitoral foram gastos mais de 22 milhões de Reais, enquanto que em todo o ano de 2003, os gastos chegaram a "apenas" 6,4 milhões!).
Esse processo é a oportunidade que tem a corte eleitoral da Paraíba de julgar Cássio Cunha Lima pelo "conjunto da obra", já que ainda restam mais dois outros processos cabeludos contra o ex-governador: o dos envelopes amarelos e o do Caso Concorde – lembrando que ele também já foi cassado pelo TRE pelo uso eleitoral do jornal A União. E que obra magnífica nos deixou o ex-governador! Ela provaria ser ele um ficha suja?
Dar a Cássio Cunha Lima o direito de se candidatar é dizer para paraibanos e brasileiros: "continue assim, ex-governador. O seu exemplo é inspirador!"
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