Acompanho Copas do Mundo de Futebol desde a de 1978. Da de 1974, quando eu tinha 7 anos, tudo que sobrou na memória foram as imagens de uma Itaporanga, onde morei na infância por 3 anos, de ruas vazias como se ela fosse uma cidade fantasma. É uma lembrança de um país que sempre parou para assistir sua seleção em jogos de Copa do Mundo. De 1978 a 1994 sofri por 16 anos a tristeza de nunca ter comemorado a vitória numa Copa do Mundo. Depois de sucessivos desastres, comecei a temer que isso jamais acontecesse durante a minha vida. Continuadamente, assisti às derrotas de 78, 82, 86 e 90.
1982: a copa que merecíamos ganhar e perdemos
De todas elas, a que mais me doeu foi de 1982. Não apenas porque aquela seleção foi a melhor que eu já vi jogar, mas porque do alto dos meu 15 anos a vitória brasileira em 82 seria uma justa homenagem ao futebol do maior jogador de todos os tempos, Zico, e a um time que também tinha Sócrates, Falcão, Éder Aleixo, e os incríveis laterais (do Flamengo) Leandro e Júnior, e um maestro do tal futebol arte como treinador, Telê Santana.
Trucidamos nossos adversários com uma elegância e uma facilidade que, sonhávamos nós, nos dava a certeza mesmo antes da copa de que não haveria adversário à altura do nosso escrete. Especialmente a Argentina do então jovem Maradona, a qual goleamos por 3 a 1, num olé memorável. 1982 me ensinaria definitivamente que nem sempre o melhor time era o que levantava a taça no final, e que nas copas, sendo rápidos torneios, os fatores motivacionais e psicológicos, especialmente nas partidas decisivas, são tão valiosos quanto a qualidade do futebol. Perdemos para uma sofrível Itália, que passara para a segunda fase da copa e para o grupo do Brasil capengando depois de 3 empates seguidos, e no saldo de gols marcados.
Vi um Paulo Rossi, com uma sorte infernal, abrir o placar daquela partida que não sairia jamais da memória dos brasileiros que a assistiram; em seguida Sócrates, depois de um daqueles passes magistrais que só Zico sabia dar, empatou o jogo; no finalzinho do primeiro tempo, depois de um suculento passe de Toninho Cerezo que, inexplicavelmente, recuou a bola para o espaço vazio da nossa defesa para nele aparecer novamente Paulo Rossi, que acordara na copa para infernizar nossas vidas. Rossi avançou sozinho e fuzilou a meta do fraco goleiro Waldir Peres. No segundo tempo, sofremos as dores de todas as copas, imaginando o que acontecia com a nossa seleção que simplesmente não aplicava outra goleada naquela Itália que só sabia marcar e temer o Brasil.
O pior é que perdemos jogando bem, ou seja, jogando o futebol de sempre. Eu me lembro perfeitamente de todos os lances daquele jogo, do gol que Serginho Chulapa perdera, sozinho, na marca do pênalti e de frente para o gol, da camisa de Zico escandalosamente rasgada por um zagueiro italiano dentro da área, das chances desperdiçadas. Até que, por volta dos 30 minutos do segundo tempo, Falcão recebeu a bola de Júnior, ao mesmo tempo em que se deslocava sincronizadamente com outros jogadores para a direita, o que abriu a defesa italiana, e Falcão, de fora da área e com o gol aberto, acertou um chute no ângulo de Dino Zoffi, o veterano goleiro italiano que defendera a Azurra na final de 1970.
Eu, que não conseguia mais assistir ao jogo, explodi numa alegria que misturava todas as torcidas naquela sala e que só as Copas são capazes de unir num abraço. Jamais senti alívio tão grande, a não ser quando Nunes marcou o terceiro gol na decisão do brasileiro de 1980. Na adolescência, vivemos nossas paixões tão intensamente que por vezes, quando adultos, sentimos saudades do quão absorvente eram nossos sentimentos, não apenas os amores que nos arrebatavam. Envelhecer é, também e principalmente, domar esse vulcão de sentimentos que vai ficando desativado até morrer numa fria calmaria. Depois de 1982, nenhuma vitória e nenhuma derrota no futebol teve o mesmo significado para mim.
Restabelecida a ordem das coisas com o empate que nos daria a classificação para a semifinal, queríamos agora ganhar da Itália para mostrar nossa supremacia. Engraçado que, diante de uma derrota iminente, imploramos aos céus por um empate; conquistado o empate, eis que ele se tornar desonroso para as nossas tradições, mesmo que, como naquele fatídico jogo, o empate nos levava à vitória. Mas, aquela seleção podia mais. E eis que surge novamente Paulo Rossi para atazanar a vida de uma nação inteira. Depois de um escanteio, que Waldir Peres com mais esforço, como reclamei à época, poderia ter evitado – fieis à nossa tradição católica, como gostamos de encontrar culpados para tudo! – a bola é lançada para o cabeceio, a defesa afasta para frente para o revide com um chute de primeira de um jogador italiano na entrada da área congestionada... e Deus, que naquela tarde, não sei exatamente por que, vestia a camisa azul da Itália, deixa que a bola vá na direção de Rossi, que apenas desviou para o gol... O pesadelo novamente começava e, dessa vez, para nunca mais acabar. Dirceu ainda cabeceou uma bola que foi defendida por Zoffi em cima da linha aos 44 minutos do segundo tempo. Quando o juiz apitou o fim da partida me dei conta de que, especialmente no futebol, ninguém era imbatível. E é exatamente por isso que ele é tão apaixonante. Quem imaginaria que o Uruguai venceria o Brasil, em 50? E a Alemanha a Hungria, em 54? E novamente a Alemanha a Holanda, em 74? Quem imaginaria, antes da partida, que aquela Itália venceria o Brasil, e depois a copa de 82?
E a derrota naquela copa foi tão dolorosa porque éramos, de longe, a melhor seleção do mundial. Na minha imaginação, se fosse possível trocar, trocaria de bom grado a vitória de 1994 pela de 1982.
1994: a copa que merecíamos perder e ganhamos
De todas as copas que eu vi o Brasil jogar, as de 1990 e 1994 foram as que apresentamos o futebol mais sofrível. De 90 a 94, abandonamos a Era Telê para entrarmos com força no pragmatismo da Era Lazaroni/Parreira. Na de 90, dava pena ver a mediocridade do nosso futebol, excessivamente defensivo, excessivamente medroso. Naquela copa, a Argentina repetiu a Itália de 2002: com uma medíocre primeira fase – se fosse no modelo de hoje, os argentinos teriam sido eliminados na primeira fase, já que eles se classificaram em 3º no seu grupo, atrás de Camarões e Romênia.
Nem longe lembrava o futebol de 1986, quando Maradona mostrou ao mundo a exuberância de sua majestosa arte, que nos dá inveja até hoje e, talvez por isso, consciente e inconscientemente, a maioria dos brasileiros o detesta. A Argentina eliminou o Brasil num jogo em que a nossa seleção teve várias chances e, no único lance criado durante todo o jogo, Maradona decidiu para os argentinos: arrancou antes do meio de campo, driblou 3 jogadores brasileiros e, quase caído, deu o passe para Caniggia, que, sozinho, driblou Tafareu e fez o gol. Isso aos 35 minutos do segundo tempo. O Brasil novamente estava fora da copa e a Argentina continuou e só foi parada na final, quando perdeu para a Alemanha.
Em 1994, até que tínhamos um time bom (Romário, Bebeto, Raí, Jorginho, Leonardo), mas tínhamos um limitado futebol. Jogamos a primeira fase com times medíocres (Rússia, Camarões e Suécia). Vencemos os dois primeiros e empatamos com o último. Depois, vivemos uma sucessão de sufocos: 1 x 0 nos Estados Unidos, 3 x 2 na Holanda, com um gol salvador de Branco (salvador mesmo, porque não fosse ele a Holanda teria virado o jogo depois de ter empatado quando perdia por 2 x 0), 1 x 0 novamente contra a Suécia na semifinal, com um gol de cabeça (de cabeça!) de Romário, o que nos levou à final contra a Itália.
Nela, quase morremos num, não fosse o nervosismo de uma decisão de copa, tedioso 0 x 0 no tempo normal e na prorrogação, o que nos obrigou a enfrentar, como diz Galvão Bueno, a "loteria" dos pênaltis. Decisão nos pênaltis foi mesmo uma síntese do que foi o futebol durante aquela copa, para a desonra tanto de Brasil quanto de Itália. Os dois países mais apaixonados por futebol mereciam mais. Mesmo assim, torci intensamente. Lembro que a final aconteceu num final de uma tarde chuvosa de julho e que durante todo o jogo pensei nos anos de espera para chegar até aquele momento. Quando Roberto Baggio chutou para fora o pênalti que deu a copa para o Brasil pude ver a loucura em movimento: gritos quase desesperados, choros convulsivos, corpos que rolavam nas poças das ruas enlameadas do Cristo Redentor. Depois de 24 anos de espera, tudo se justificava para uma geração, como a minha, que nunca assistira sequer a uma final de Copa do Mundo com o Brasil dela participando.
1982 e 1994 me ensinaram, antes de tudo, que, diante das vitórias e das derrotas, nada de significativo muda nas nossas vidas. Depois das copas, a vida continua bem ou mal com era antes delas. Que copas não elegem presidentes nem os fazem perder eleições (Lula perdeu em 1994, quando o Brasil foi campeão, em venceu em 2002, quando novamente o Brasil ganhou a copa). Em tempos de copa, muito se fala sobre nossas manifestações de patriotismo quadrienal, quando desfraldamos orgulhosos nossa bandeira a cada copa. Critica-se, em geral, o patriotismo que só se apresenta nesses anos, e a ausência dele nos anos seguintes. Isso é uma visão tosca e, como sempre, preconceituosa contra o nosso povo.
O patriotismo das copas é a paixão do brasileiro pelo futebol e por sua seleção, a mais universal e consensual expressão da identidade nacional, que transcende as diferenças de classes, raças, religiões. E pouco tem de ideológico, a não ser os interesses econômicos que se escondem atrás do futebol e, especialmente, das copas. Mas, o futebol há muito já se tornou isso: um lucrativo negócio para empresários da comunicação, de materiais esportivos, para dirigentes e jogadores. Durante as copas, sermos torcedores brasileiros ou brasileiros torcedores dá no mesmo. Não esqueçamos que o estimulo ao patriotismo é quase sempre manifestação de autoritarismo. Somos durante as copas isso mesmo: uma imensa e coesa torcida de adultos e crianças, jovens e velhos, homens e mulheres. Aliás, estas últimas, em sua maioria tão refratárias ao esporte fora das copas, são as que mais vibram, gritam, choram, tudo antecedido por uma caprichada preparação do visual antes de cada jogo. Comemoramos e choramos todos juntos nossas vitórias e derrotas. E depois, tudo volta ao normal.
É assim que tem que ser.
Como eu acabei alongando demais esta postagem, deixo para a próxima breves comentários sobre a Copa de 2010, e minha homenagem aos que lutaram e souberam honrar com seu esforço e vontade de vencer nossa bandeira, nossa camisa e a nós mesmos que torcemos.
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