Talvez porque tenha evitado sempre o debate aberto com o mercado (financeiro), que manda e desmanda no país há décadas, Lula não tinha medido ainda o poder de convencimento e arregimentação de sua liderança em enfretamentos dessa natureza. Desde que tomou posse em janeiro, entretanto, o petista está testando sua força no embate contra as "vozes do mercado" na imprensa e no Congresso e, ao que parece, tem conquistado vitórias animadoras, sobretudo quando o assunto é política de juros do Banco Central, fixada hoje em 13,7% - 8% real, considerando a inflação de 2022, que foi 5,79% (IPCA), - de longe a maior taxa de juro real do mundo.
Na entrevista concedida ontem à TV 247, do site Brasil 247, Lula aumentou o tom das críticas, lembrando que a crise bancária em curso nos Estados Unidos e na Europa já afetou gigantes do sistema financeiro a um custo de bilhões de dólares aos cofres públicos, como no caso do Credit Suisse, que vai receber US$ 280 bilhões (R$ 1,5 trilhão) do Banco Central da Suíça para financiar a fusão com outro banco do país, o UBS, e impedir a bancarrota. Lula poderia ter lembrado o que aconteceu na crise de 2008-2009, a maior crise financeira do capitalismo provocada pela completa ausência de regulação aos tais mercados.
Naquela crise, os "liberais" estadunidenses, que rejeitam como heresia qualquer "socialismo" intervencionista, aceitaram como normal o aumento da participação do Estado dos EUA para 60% na GM, resultando num "aporte" de US$ 50 bilhões, e de 12% do governo canadense ("aporte" de US$ 9,5 bilhões). No caso da Chrysler, a participação do governo dos EUA na empresa chegou a 8%. A empresa foi repassada à Fiat, que, sem aporte algum, passou a controlar 20% da empresa (clique aqui). Ser liberal é bom, né?
Lula ontem lembrou que os bancos
no Brasil vivem mais dos juros extraídos do setor público, pagos com recursos
do orçamento, sobretudo federal, e emprestam muito pouco às empresas do país.
Segundo a Auditoria Cidadã da Dívida, os gastos do governo federal apenas com
o pagamento de juros e amortizações da dívida pública somaram, em 2022, R$
1,879 trilhão, 46,3% do Orçamento Federal Executado, ou seja,
devidamente pago.
A gritaria em defesa da
manutenção da autonomia do Banco Central, bem como o teto de gastos, tem a ver
com a manutenção da reserva orçamentária para pagamentos desses "serviços
financeiros", reserva que cresce a cada ano em proporção ao PIB, para
pagar juros a quem já tem dinheiro demais. É o direito sacrossanto dos bancos e
dos "investidores". A gritaria do "jornalismo econômico"
não é a mesma quando se trata de uma reserva orçamentária destinada aos mais
pobres.
Lembram que faltou recurso no
orçamento federal de 2023, entre tantos cortes feitos pelo governo ("antissistema")
anterior, para o pagamento do benefício de R$ 600,00 do Bolsa Família a quem vive
abaixo da linha da pobreza e estava passando fome? Lembram do escarcéu da
grande imprensa, pelos comentaristas de economia, porque o governo desejava
mexer no "teto de gastos"? Pois bem, para essas pessoas, pode faltar
dinheiro para quem passa fome, mas, jamais para os bancos, que no ano passado
lucraram R$ 96,2 bilhões, um aumento nominal de 6,3% em
relação a 2021, que foi R$ 90,5 bilhões!
Lula já venceu o debate sobre o
absurdo que é a taxa de juros do país que ameaça a economia brasileira,
sobretudo em um momento de crise. Alguns jornalistas agora até concordam com as
críticas do presidente, mas esbravejam contra essa ousadia de Lula torná-las
públicas. É medo, na realidade, de Lula avançar mais e politizar - no ótimo
sentido da expressão, que significa indicar quem ganha e quem perde com certas
decisões estratégicas - o debate sobre política econômica, superando os
restritos círculos em que é decidida.
Lula sabe que estamos em um
momento de viragem histórica que as crises anunciam e que o sucesso do seu
governo dependerá da disponibilidade orçamentária para fazer investimentos em
infraestrutura, políticas públicas que melhorem a vida dos mais pobres e
retomada de um projeto de reeindustrialização do país. Lula já deve ter
compreendido que, talvez, a arrecadação com as exportações não seja suficiente
para financiar o novo modelo.
O primeiro passo Lula já deu. O
segundo, acho, depende do apoio das ruas, porque Lula é Lula, mas não é Deus.