Cortam o caminho em cruz, como numa metáfora de suas próprias vidas. E as duas linhas cruzadas, formadas de pessoas e automóveis, promovem esse encontro quase entre castas, numa fronteira asfáltica a indicar o apartheid social no qual nossas classes rica e média cultuam e cultivam cotidianamente no desprezo que demonstram pelos mais pobres. Os que atravessam o caminho dos mais ricos nessas insólitas manhãs pisam o asfalto protegidos dos ameaçadores automóveis, que já ceifaram inúmeras vidas naquele local, apenas por uma lombada incrustada no chão. E aquela lombada vem a ser o símbolo gritante desse desprezo, que marca em brasa o coração das famílias que perderam seus entes queridos: ela provavelmente só está lá por conta dos breves lampejos da controlada e desorganizada revolta daquelas pessoas, fartas de sua invisibilidade, e do custo quase zero para colocá-la ali.
Talvez seja um dos breves momentos em que esses dois mundo se encontram de verdade, despidos da liturgia do trabalho que os aproxima, na “cordialidade” buarque holandeana de uma relação ainda incapaz de se tornar impessoal, e os afasta, quando voltam a atravessar essa fronteira pisando novamente o asfalto depois do trabalho e em busca do aconchego do apertado lar. Sem direito sequer a uma passarela, provavelmente por conta do alto custo da obra, mesmo que se gastem milhões em inutilidades e mimos para a classe média.
São brasileiros os partícipes desse encontro? Tenho cá minhas dúvidas. A idéia de povo é homogeneizadoramente importante para se fundar uma nação, mas é igualmente importante para encobrir essas diferenças. O Brasil rico só existe por conta dessa massa desprezada que forma o nosso “povão”. Mas ele nunca foi de todos nem muito menos para todos. Mudar isso dará mais significado à idéia de um povo e de uma nação brasileira. Sem fronteiras de nenhuma espécie.
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