sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

O nome de João Pessoa: a tragédia que ainda nos assombra


Aqui morava um rei

Aqui morava um rei quando eu menino

Vestia ouro e castanho no gibão,

Pedra da Sorte sobre meu Destino,

Pulsava junto ao meu, seu coração.

 

Para mim, o seu cantar era Divino,

Quando ao som da viola e do bordão,

Cantava com voz rouca, o Desatino,

O Sangue, o riso e as mortes do Sertão.

 

Mas mataram meu pai. Desde esse dia

Eu me vi, como cego sem meu guia

Que se foi para o Sol, transfigurado.

 

Sua efígie me queima. Eu sou a presa.

Ele, a brasa que impele ao Fogo acesa

Espada de Ouro em pasto ensanguentado.

 

O soneto acima é de Ariano Suassuna. O “rei” do poema é João Suassuna, governador da Paraíba entre 1924 e 1929. Ariano nasceu em 1927, portanto, durante o governo do pai, e ele gostava de lembrar que correra nu pelos corredores do Palácio da Redenção, onde, à época, residia a família do “presidente da Paraíba”, hoje chamado governador.

Ariano Suassuna homenageia o pai perdido para o ódio político e para as rixas familiares, quando mal tinha começado a viver. A dor que lateja em cada verso foi descrita, em um depoimento dado para um documentário sobre a Guerra de Princesa, como um punhal que ele imagina enterrar-se em seu coração sempre que pedem para recitá-los.

É por essa razão que, sempre que lembro a origem do nome atribuído à capital da Paraíba, lembro que se trata também de uma homenagem aos eventos que nos levaram até ele. É como se essa tragédia shakespeariana continuasse a nos assombrar quase um século depois. Sempre que esse debate volta — e ele sempre volta — os que não conhecem a nossa história política, e os embates familiares ainda tão presentes, continuam a se perguntar sobre a razão de sua existência, e, com alguma razão, imaginam sua inutilidade.

Por isso, o Tribunal Regional Eleitoral da Paraíba daria uma contribuição decisiva para que os habitantes de João Pessoa possam, finalmente, superar o trauma da tragédia que o nome de sua cidade rememora — e homenageia. Aliás, seria a oportunidade para finalmente atender ao que os deputados estaduais decidiram durante a elaboração do Constituinte da Paraíba, que, defrontados novamente com a dilema 30 anos atrás, resolveram transferir a decisão para o povo pessoense, através de um plebiscito que jamais foi realizado.

Seria um importante estímulo para o povo da capital conhecer sua história, ou parte importante dela.

Um nome marcado pela tragédia, pelo sangue e pelo luto

Depois de deixar o governo da Paraíba, João Suassuna se elegeu para mais um mandato de deputado federal e tinha fortes ligações políticas com João Dantas, o advogado que em 26 de julho de 1930, assassinou João Pessoa na Confeitaria Glória, em Recife. O assassinato de João Pessoa deflagrou a Revolução de 1930, que começaria dois meses depois, em 3 de outubro. Apesar do assassinato ter motivação passional, o crime mobilizou o país como um crime político. João Pessoa havia se tornado uma figura-chave na política nacional. Ele tinha acabado de participar e ser derrotado da eleição presidencial ocorrida em março de 1930, na condição de candidato a vice na chapa liderada pelo então governador do Rio Grande do Sul, Getúlio Vargas. Eram recorrentes as denúncias de que a vitória do governador paulista, Júlio Prestes, candidato apoiado pelo então presidente, o também paulista Washington Luiz, tinha sido fraudada, o que não seria nenhuma novidade. João Suassuna era da base de apoio do “perrepista” Washington Luiz no Congresso e apoiara Júlio Prestes.

O que levou João Dantas à Confeitaria Glória naquela manhã de julho, entretanto, foi a divulgação de cartas e poemas eróticos da professora e poetisa cabedelense, Anayde Beiriz, sua amante, que o advogado guardava em seu escritório. As cartas foram encontradas pela polícia no escritório depois de uma invasão e disponibilizadas ao público, o que causou, claro, um escândalo que resultou numa sucessão de tragégias: primeiro, o assassinato de João Pessoa, por João Dantas; depois, do próprio João Dantas, morto na cela em que estava preso, em Recife, no dia em que começou a Revolução de 1930 (3 de outubro), e, 19 dias depois (22 de outubro), no suicídio de Anayde Beiriz, que fugira para Recife. Entre a morte de João Dantas e Anayde Beiriz, morreu João Suassuna, também assassinado numa manhã movimentada em pleno centro do Rio de Janeiro, quando se deslocava do hotel onde se hospedava para a sede da Câmara dos Deputados, no Palácio Tiradentes.

Enfim, o sangue representado pela metade vermelha da atual bandeira da Paraíba, que divide com o preto do luto, não jorrou apenas do coração de João Pessoa, atingido pelas balas da arma de João Dantas.

A morte de João Pessoa, claro, causou uma imensa comoção na cidade e protestos populares resultaram em incêndios de residências e perseguições a políticos do antigo Partido Republicano da Paraíba. Aproveitando o clima de comoção provocado pelo assassinato do popular governador da Paraíba, foi proposto foi à Assembleia Legislativa a mudança do nome secular da capital paraibana: de Parahyba do Norte para João Pessoa. Cinco dias depois, o erro história estava consumado. A Paraíba ganhou uma nova bandeira para representá-la, com as faixas vermelha, a nos lembrar do sangue derramado, e preta, o luto da tragédia. E o NEGO, que relembra o apoio que João Pessoa negou à candidatura de Júlio Prestes, uma atitude política corajosa, sem dúvida, mas que teria se perdido nos escaninhos da História não fosse a tragédia passional e os ventos tempestuosos que ela ajudou a soprar.

Apesar de achar improvável que seja aprovada qualquer mudança de nome, considero que é hora de nos debruçarmos sobre esse dilema para enfim tentar superá-lo. Nomes de cidades não são alterados sem o calor dos grandes acontecimentos, a não ser que haja um inconformismo majoritário na população, o que não é o caso.

Conhecer mais a fundo um capítulo da história da cidade é uma boa justificativa para o plebiscito que o advogado Raoni Vita pede que o TRE realize no próximo ano sobre a manutenção ou não do nome da capital paraibano em atendimento à determinação constitucional.

2 comentários:

  1. Parabéns pelo excelente relato de uma parte da história da nossa Parahyba do Norte e do Brasil.

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  2. Muito esclarecedor, parabéns.

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