domingo, 19 de janeiro de 2014

“Rolezinho” e apartheid social

Os "rolezinhos" contestam a existências desse mundos à parte
Quando jovens pobres da periferia de São Paulo resolveram marcar um encontro, via Facebook, em um dos shoppings da capital paulista, estava criado um movimento que tem muito a dizer sobre nossa sociedade.

Aqueles primeiros jovens que resolveram se reunir no Shopping Metrô Itaquera, na Zona Leste de São Paulo, no dia 8 dezembro, que sofrerem o constrangimento da vigília e das abordagens feitas pelos seguranças do estabelecimento sem que nada disso fosse justificado – eles não estavam roubando ou fazendo qualquer tipo de tumulto, – descortinaram para o mundo, ao provocar um necessário debate sobre o caso, uma realidade marcado cada vez pela segregação social.

O “rolezinho”, como o movimento ficou conhecido, também é capaz de mostrar o alto grau de espontaneidade da organização dos jovens, sem que para isso eles precisem de estruturas políticas tradicionais, como as entidades estudantis.

Hoje, movimentos se criam com a mesma força e rapidez com que desaparecem, para depois voltarem a se recriar, a partir de novas bandeiras.

Esse é um fenômeno cultural e político que ainda estamos longe de compreender o seu alcance e suas consequências, mas já temos amostras o suficiente para considerar que se trata de uma nova forma política de organização sem organização, ou seja, baseada na ausência das chamadas “vanguardas”, aquelas forças que antes tomavam a iniciativa e iniciavam mobilizações e mesmo revoluções.

No mundo acadêmico, esse fenômeno é a realização – com todos o senões que a questão merece – do que se chama de “morte do sujeito”, nesse caso, coletivo.

Esse caráter, em parte espontâneo, deixa sempre em aberto os caminhos que tais movimentos podem assumir, porque o papel anterior da liderança é substituído por formas mais horizontais e descentralizadas.

Indivíduo ou grupo?

Por que esses jovens optaram pela ida coletiva aos shoppings? Provavelmente, tanto pela presença dos seguranças a mando dos donos dos shoppings, que os vigiam e, não muito raro, os convidam a sair , ou pelo olhar reprovador e ameaçador daqueles que reagem ao ver seu espaço invadido.

Por serem os shopping centers templos do consumo, espaços demarcados destinados àqueles de renda mais alta, que vão lá para, além de consumir coisas, consumir o processo que leva ao consumo: a propaganda, as vitrines, a moda, e os desejos a se realizar.

Portanto, é um ambiente opressivo para quem não pertence aquele mundo e tem contato com ele apenas pela televisão ou quando está lá apenas a trabalho.
Esses jovens, claro, têm também desejos de consumo, sonhos de pertencimento a esse mundo, mas sabem que dificilmente os realizarão.

É essa “consciência coletiva”, como diria o sociólogo francês Émile Durkheim, que os oprime e os retêm fora dos shoppings.

Por isso, a maneira de enfrentar essa interdição psicológica é entrar nos shoppings em grupo, como forma de buscarem proteção mútua contra a carga opressora dos olhares e das desconfianças.

E assim, como um rastilho de pólvora detonado pela divulgação dos primeiros enfrentamentos dentro e fora dos shoppings paulistas, o movimento chamado de “rolezinho” começa a se espalhar pelo Brasil, inclusive aqui em João Pessoa.

Antes de mais nada, mesmo que não seja a intenção explícita desses jovens, que desejam mesmo é acessar e viver nesses ambientes de consumo, o “rolezinho” expressa o fosso social que ainda existe no Brasil e continuam a nos mostrar apartheid social que se materializa nos espaços dos shopping centers hoje, mas não só neles.

Essa mobilização, entretanto, tem gerado temores, ameaçado os jovens de classe média que se “divertiam” até agora sob a proteção desses espaços privados, mesmo sendo eles espaços abertos ao público.

Condomínios fechados e “micarandes”

Eu lembro que há algum tempo se desenvolve no Brasil essa tendência de ocupação de espaços exclusivos, segregados.

Os condomínios fechados são um exemplo disso. São eles espaços urbanos privatizados, cujo acesso é destinado apenas a quem lá vive, protegido por cercas elétricas e toda parafernália da segurança privada.

Existem condomínios autossuficientes, que já contam até com escolas, supermercados, farmácias, onde muitos jovens vivem isolados e alheios ao mundo e aos problemas do mundo.

A diversão desses jovens, muitas vezes, se resume a ir aos shoppings, nesse mundo virtual que é a extensão do Ipad e do smarthphone com os quais eles “interagem” com a sociedade “lá fora”.

Nesse território ideal, os pobres são mesmo uma ameaça a desfigurar esse universo organizado, limpo e cheiroso. Essa segregação não deixa de ser uma maneira de desresponsabilização das condições em que vive a pobreza.

Outro espaço de segregação, felizmente em desuso, pelo menos aqui em João Pessoa, são as “Micaretas”, esses carnavais fora de época em que os foliões brincam em blocos que separam seus componentes através de cordas e seguranças que garantem o isolamento dos jovens.

Mesmo em realizado em espaços públicos, nessas “Micaretas” brinca que tem dinheiro, quem pode pagar para entrar dentro das cordas.

Quem não tem dinheiro fica apenas olhando do lado de fora.

Veio à minha lembrança agora um diálogo que tive certa vez com uma jovem de classe média a respeito do bloco Muriçocas de Miramar.

Em meio a diversos comentários a respeito do carnaval, um em especial me chamou a atenção: “Eu não gosto do Muriçocas por que ele é muito ‘misturado’” A “mistura” referida, nesse caso, era social. Na rua, no espaço público todas as classe se encontram, se “misturam”, se integram, convergem num mesmo sentido de celebração e alegria.

Se refletirmos bem, os rolezinhos são uma reação a esses mundos à parte. Os seus participantes querem participar deles, mesmo não sendo bem-vindos.


O que nós temos a dizer para eles? 

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